terça-feira, 31 de março de 2009

A ameaça do tempo

"A gente se apertou um contra o outro. A gente queria ficar apertado assim porque nos completávamos desse jeito, o corpo de um sendo a metade perdida do corpo do outro."
Caio Fernando Abreu


Talvez o meu exagero tenha se tornado um vício. mas não faço por mal. nem por descontrole. faço porque sou assim. desse jeito meio sem limites. essa espera amarga. essa coisa de termos que viver mais um tempo sozinhos. pra termos a juventude completa. as emoções certas. não. eu não acredito nisso. prefiro errar agora. do que acertar amanhã. quero surpresas. como daquela vez que você apareceu na porta da minha casa. molhado da chuva que despencava do céu escuro. e olhou nos meus olhos. como quem também estivesse viciado. e depois eu te convidei pra entrar. enxuguei teu rosto. e pedi pra você ficar. deita aqui. foi o que eu disse. e a gente se apertou. acabou com o frio e com a abstinência. mas agora. você anda distante. uns milhares de quilômetros. e tudo isso porque precisa de tempo. enquanto eu fico sozinha. de tanto só. eu sei. nunca acreditei em destino. nem em promessas. quiça em futuro. não faço planos. é eu entendo. na verdade não. nada disso faz sentido. o amor é uma coisa incoerente. nem sequer tem definição. por que é que você não chega logo. de surpresa ou de espera. e a gente fica junto. não existe nada além do agora. e de um ontem mal resolvido. por isso ando assim. em crise de sentimentos. esse não saber me faz querer voar. mas ainda deixo a porta aberta pra ver se você chega. atendo o telefone pensando ser você. é óbvio que não te quero por obrigações. mas ainda quero muito que você volte logo. nem que seja só pra me levar junto com você. e sermos sós no mundo. agora acho que ando ficando louca. mas talvez seja excesso de lucidez. tomei tanto café. que minha cabeça não pára de formar idéias. e meus olhos não se fecham mais. é que fico ameaçando o tempo. quem sabe ele não anda mais depressa. e a sua juventudese torne ontem. e num crescimento acelerado. você se sinta completo pra me fazer uma surpresa. e tocar minha campainha.

saiba que estarei esperando na minha sala de paredes brancas e televisão vazia.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Os companheiros do tempo

Em um tempo não tão distante do agora, em meio a uma ditadura voraz e indesejada, estavam eles. O porta voz, era um homem barbudo de roupas simples. A exigência de tempos melhores para o povo e principalmente para os operários era contestada pelo Estado maior.
Os anos se passaram e o grupo virou partido político, mais conhecido como a oposição. Os laços de amizade cresceram nesse tempo. Agora eram mais que amigos, eram companheiros. Os discursos tomaram outro tom, e os comícios aconteciam em outra casa. Um deles virou presidente e os outros deputados, tesoureiros, conselheiros, como se todos fossem uma linha só, afinal de contas pertenciam a novos tempos e agora tinham voz. E quando tudo parecia navegar por ondas calmas chegou a tempestade, mais conhecida como mensalão.
O grupo de companheiros perdeu os remos e não encontrou nenhum bote salva-vidas naquela tormenta. José Dirceu, o grande amigo do presidente, sabia nadar e logo chegou a terra firme e se salvou. Delúbio Soares ficou ali e afundou, mas foi encontrado instantes depois e sobreviveu. Lula, o presidente que tinha decidido ficar em casa naquele dia, preferiu não se envolver, pois não sabia de nada.
O tempo passou mas ninguém esqueceu, Delúbio não soube nadar, mas não morreu. Ganhou castigo, não podia mais ver os companheiros. Escreveu cartas, pediu desculpas, implorou atenção, mas seus companheiros ignoraram. O que faria agora? Não poderia ele ser expulso de um grupo que criou. Precisava pedir uma última coisa e foi o que fez, era a chance de ser aceito de novo.
Delúbio que era companheiro, virou tesoureiro, não soube nadar, pediu anistia. Os companheiros disseram que iriam pensar, mas isso poderia demorar. Ele resolveu aguardar, tinha certeza que seria perdoado, porque agora aprendeu a nadar.

Crônica jornalística baseada em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u539921.shtml

segunda-feira, 23 de março de 2009

Olhos.


"Retórica dos namorados,dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra de dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e energético, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as sus pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."(trecho de Dom casmurro- Machado de Assis)

Descreveu ele o que eu diria dos seus olhos. Sem que eu perceba. Eles me puxam. Me tragam. Me envolvem. Me seguram. É um entorpecente. Uma nascente. Figura. Ternura. Coisa e tal. O tempo em que isso se passa. Não é longo. Tampouco é curto. É incontável. Maleável. É meu. O momento que me perco em você. Me derrubo nas ondas de ressaca. E então afundo. No mais profundo. Sentido. Desmedido. Acordo. E de repente. Me pego te olhando nos olhos. Mais uma vez. Sem perceber. Mas por querer. Gosto do meu vício. Da felicidade. E do suplício.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Por Perto

Perto de você(Teatro Mágico)
Quando começar o frio, dentro de nós
tudo em volta parece tão quieto
tudo em volta não parece perto
toda volta parece o mais certo
certo é estar perto sem estar
perto de você, sou tão perto de você, sou tão perto de você

Quando o tempo não passar, dentro de nós
cada hora é como uma semana
cada novo alô é mais bacana
cada carta que eu nunca recebo
é sempre um motivo pra lembrar
sou tão perto de você vida amarga, como é doce a dor da palavra dita de tão longe, dita de tão longe, dita de tão longe...

Quando alguém se machuca, dentro de nós
toda culpa parece resposta
nossa busca não parece nossa
nosso dia já não tem mais festa
não tem pressa nem onde chegar
sou tão perto de você

Quando a paz se anunciar, dentro de nós
é porque aquilo que nos cega, mostra um outro lado da moeda
que não apaga as coisas do meu peito
o preço é me fazer acreditar
sou tão perto de você
Vida amarga, como é doce a dor da palavra dita de tão longe, dita de tão longe, dita de tão longe

quando a música acabar, dentro de nós...
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Já que eu não consigo dormir, e não quero te acordar no meio da noite sem ter muito o que dizer, resolvi te escrever.
Na verdade não tenho o que falar, ao mesmo tempo de querer estar ao seu lado e poder dizer tantas coisas. Contraditório tudo isso!
Mas eu sou assim, meio adversa mesmo. Meio complicada. Meio insegura. Meio ciumenta. Meio sem jeito. Meio tímida. Meio falante demais. Meio sem segredos. Meio sem circunstância. Meio sem pretextos.
Acho que sou metade de muitas coisas, mas um dia vou ser inteira de tudo. E isso não é ruim, eu acho. Afinal, tem tanta coisa no mundo que
eu nunca vi. E outras tantas que desconheço. Mas enquanto o tempo passa vou me completando. Vou te esperando. Vou vivendo. E espero que
você faça o mesmo. Descubra todas as coisas que precisa, pra dividirmos depois.
Deixa o tempo rodar seus ponteiros lentamente. É você mesmo que
diz que temos todo tempo do mundo. Por isso, não tenho mais pressa. Nem conjugo mais verbos. Nem crio frases no futuro. Mesmo que próximo.
Confesso que estou ansiosa pra te ver novamente. Mas os dias me dizem pra ter paciência. Logo você chega. E depois me procura. Por isso, não tenho mais pressa. São poucas as coisas que carrego comigo. Afinal de contas, preciso de espaço para as coisas novas.
Outro dia, ouvi nossa música. Quis muito te ligar. Mas faltou-me coragem. Fiquei lembrando do dia em que me deu flores. Eu nada disse. Embora tivesse tantas coisas pra falar. É que não sabia o que fazer...

quinta-feira, 19 de março de 2009

a menina das coisas.

de todas as coisas que ela fazia. pensava no que não tinha feito. era assim que vivia. de coisas. dela. dos outros. de tudo. e do mais um pouco. não usava relógio. só jeans surrado. o rosto sempre imóvel e suado. o cabelo preso. qualquer novidade um tropeço. não sabia lidar com algumas coisas. mesmo que vivesse de tudo. era estranho ser ela. queria tantas coisas. queria tanto um nada. migalha. qualquer coisa. certo dia descobriu que não queria mais o que tinha feito. também não pensaria no desfeito. era feitio dela complicar tudo. coisa da menina que não sabia das coisas. onde ia. com quem faria. o que encontraria. precisava descobrir tudo isso. antes de voltar pra casa dela. chegou a pensar que nunca voltaria. comprou uma fita vermelha pra pôr na cabeça e deixar os cabelos soltos. mas não teria tempo. era momento. sorria colorido agora. que não tinha rumo. nem significantes. era objeto desnorteado. embora tivesse significado. profissão: seria pedinte da vida. de carona. de comida. de livros. mas compraria o mundo. todas as cidades. seria culturalmente possível. em qualquer cartão de visitas. mesmo que não tivesse identificação. mudou até de nome. agora era Alice. não mais Ana. viveria nas maravilhas do novo. e nos destemperos do amanhã. porque a incerteza não tem sabor. só espera. passou anos molhando o rosto em águas geladas. que a deixava pálida. mas ainda não podia voltar. tinha que continuar. amanhã partiria pra outro lugar. porque não gostava da mesmice e dos laços. era dona de tantos lugares. o dinheiro dela. era a palavra. dita. falada. cifrada. encomendada. copiada. não era papel. nem tinta. nem formalidades. enquanto para sua casa não voltava. esvaziava todo o sossego. em solos que agora eram seus. menina de ouro aquela. vivia do suficiente. num ritmo intorpecente. era agente. era ela. a menina que agora descobria as coisas.

terça-feira, 17 de março de 2009

jogo feminino


[Marina]- Vocês acham que existe sexo sem amor?
[Gabi e Luisa]- Com certeza...
[Luisa]- Eu acho que não existe amor sem sexo também.
[Gabi]-Aí eu discordo, acho que quando se ama, sexo é secundário.
[Marina]- Mas faz parte e é importante. Tô com a Luisa. amor não sobrevive sem sexo.
[Gabi]- Namoro o Cauã há quatro anos, e demorou um ano e pouco pra gente ir pra cama. Eu o amava antes disso, e não acho que o sexo tenha mudado alguma coisa.
[Marina]- Experimenta ficar sem sexo, mesmo com todo o amor do mundo, depois de já ter ido pra cama com ele...você pode até aguentar mais, mas ele vai subir pelas paredes...
[Luisa]- Sexo traz intimidade, você perde a vergonha. Vocês passam a falar de tudo, a dividir escova de dente e cobertor. Acho que a relação ganha outro sentido. Todas nós namoramos e sabemos disso...
[Gabi]- É vocês têm razão. uma coisa é não ir pra cama, e deixar essa "porta" trancada. outra é se entregar e fugir depois. Acho que meu amor não viveria sem sexo. Só se acontecesse alguma coisa né?!
[Luisa]- Acho que conforme o tempo passa. esse tabu de ir pra cama ou não. vai caindo. já fiz sexo sem amor e foi bom. mas prefiro muito mais fazer isso com amor. ganha uma tonalidade diferente. rola um carinho, um desejo mais gostoso. você não é um objeto. é uma mulher. e não faz sexo. faz amor.
[Marina]- Só fui pra cama com o Marcos. e sinceramente não tenho vontade de conhecer outro homem. não encaro essa onda de experimentar. a primeira vez que pensei em sexo, me lembro de ter ficado noites sem dormir. tinha medo de ser deixada depois. neura de mocidade. eu já não era mais uma menina. mas precisava de uma certeza. fiquei neurótica. até que encontrei o momento. e fomos nos descobrindo. quanto mais o tempo passa, melhor fica.
[Gabi]- Deixa de ser quantidade. passa a ser qualidade.
[Luisa]- Olha, eu sou toda de boa, confiante e segura. mas o melhor do sexo é o depois. ficar ali na cama. se olhando. conversando. envolvida nos braços dele. acho que sou romântica...
[Marina]- Você é mulher. toda mulher é romântica. por isso que eu acho que sexo sem amor perde um pouco do sentido. não que seja ruim. afinal sexo é sinônimo de prazer. mas. o legal é tudo o que está ali. o ato em si. e a atenção depois. e antes também. É tão gostoso ser bem tratada o dia todo. ficar na expectativa. receber um telefonema. ou uma mensagem...
[Gabi]- É o que eu vivo falando pro Cauã. ele tem que me tratar bem o dia todo. não só meia hora antes da gente ir pra cama. sexo envolve toda uma atenção e dedicação.
[Luisa]- Ai que exagero! fazer sexo como forma de reconciliação é uma boa também. tudo fica bem...
[Gabi]- Gente já passam das oito da noite. vamos logo fazer pipoca que o nosso filme vai começar...

E assim foram elas para a sala...

quarta-feira, 11 de março de 2009

Que mulher!

Que mulher nunca teve...

Um sutiã meio furado,
Um primo meio tarado,
Ou um amigo meio viado?

Que mulher nunca tomou
Um fora de querer sumir,
Um porre de cair
Ou um lexotan para dormir?

Que mulher nunca sonhou
Com a sogra morta, estendida,
Em ser muito feliz na vida
Ou com uma lipo na barriga?

Que mulher nunca pensou
Em dar fim numa panela,
Jogar os filhos pela janela
Ou que a culpa era toda dela?

Que mulher nunca penou
Para que ter a perna depilada,
Para que aturar uma empregada
Ou para que trabalhar menstruada?

Que mulher nunca comeu
Uma caixa de Bis, por ansiedade,
Uma alface, no almoço, por vaidade
Ou, um canalha por saudade?

Que mulher nunca apertou
O pé no sapato para caber,
A barriga para emagrecer
Ou um ursinho para não enlouquecer?

Que mulher nunca jurou
Que não estava ao telefone,
Que não pensa em silicone
Que "dele" não lembra nem o nome?

(Autor desconhecido)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Os momentos de Bia.

imagem: Devian art by Cetrobo.

O despertador a chamava todos os dias pela manhã, ela que queria sempre mais cinco minutinhos. saía de casa sempre atrasada para o trabalho. ia até a garagem. ligava o carro. e saía. aquele dia era diferente. seria o último dia igual que ela teria. tinha até feito as malas para a mudança de apartamento para casa. queria ter uma passarinho, mas tinha dó de prender alguém que podia voar.
a maquiagem leve e o sorriso pesado revelavam a surpresa que tomava conta dela. pintaria as paredes de amarelo. e teria sofás alaranjados. gostava de tudo muito colorido. era mulher trabalhadora. fotógrafa profissional. já tinha até feito algumas exposições.
trabalhou até as três da tarde. depois se despediu dos amigos que havia feito naqueles cinco anos de estúdio. sentiria saudade daquilo. mas agora seria dona de suas próprias coisas. e estava ansiosa.
Luiz era companheiro dela há uns dois anos. mas ainda não moravam juntos. isso só aconteceria depois de casarem. não por ele. mas por ela. ela pensava que tudo tinha seu tempo. hora de namorar é hora de namorar. depois noivar e casar. nada de precipitações. porque afinal de contas ela queria ouvir os sinos e fazer uma grande festa. ele era tímido. por isso só entraria nessa tradição por ela.
ele ensinou muitas coisas pra Bia. ela era tão insegura e carente. agora não. antes dele vinha ela. vivia todas as intensidades do momento. não deixava nenhuma vontade pra trás. amava ele. mas sabia que tinha as coisas dela. não que fosse fria demais. mas é que conforme o tempo passava. ela se adaptava ao jeito do mundo dos homens.
antes ela sentia vontade dele todos os minutos. queria dividir todas as coisas. era mais um sufoco do que um prazer ser dela. já dizia Mário Quintana "Com o tempo, você vai percebendo que para ser feliz com uma outra pessoa, você precisa, em primeiro lugar, não precisar dela..."por isso agora Bia aprendeu que todo mundo tem mais coisas na vida do que o amor. e repito. não que ela fosse distante demais. era só realista. era carinhosa na medida certa. segura e confiante todo tempo. às vezes tinha vontade de explodir. mas se continha pelo bem da humanidade.
ela tinha guardado algumas fotos numa caixinha verde e azul. eram antigas aquelas imagens. que a essa altura já eram lembrança. como gostava da nostalgia de viver as memórias. tudo o que tinha se transformado. estava ali naquela caixinha. eram tantas as histórias. os momentos da vida de Bia sempre foram tão exagerados. mas desde que virou gente grande percebeu que o tempo era mais curto. e envolvido por grandes problemas. Repito não que fosse ausente de sentimentos. mas era a verdade que ela descobriu.
Agora tinha que arrumar seu canto e viver o encanto da vida de gente grande.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Sim, senhora.

Já era menina-moça quando se mudou pra cidade grande pra estudar. Faria direito, e seria juíza, como sonhara o pai. A cidade em que passou infância e juventude, era pequena. Quatro mil habitantes, a maioria trabalhava na roça. Seu pai tinha terras, mas nunca escondera de ninguém que já cortou cana quando era moço. A mãe, corpulenta e com um sorriso esbranquiçado, não sabia de história, nem de gramática, mas nunca negou trabalho, nunca teve vergonha.
A menina-moça, filha única, veio quando os pais já tinham vencido na vida. Nunca lhe faltou nada, e ela nunca quis demais. Sempre estudou bastante, era orgulho da família. Fazia tudo para que os pais ficassem feliz, afinal de contas era tudo o que ela tinha de verdade na vida. Nunca namorou, nem foi em festa, nem teve amigos.
Era baixa e cheia de curvas, prendia os cabelos em forma de coque toda manhã, gostava de usar tênis e calça jeans. Quietinha e incompleta, era assim que era a menina-moça. Tinha um diário para escrever seus segredos e histórias.
Logo que acabou o colegial, foi pra cidade grande pra estudar. A mãe queria que ela fosse médica, mas o pai queria que ela fosse juíza. No final das contas, ela só queria fazer histórias, escrever sobre o mundo. Mas para que não desapontasse os pais, foi fazer faculdade de direito. O pai foi levá-la até o apartamento que ele havia comprado pra ela, com todas as coisas que ele e a mãe achavam importante. Não perguntaram do que ela precisava, sabiam que diria que não queria nada.
A despedida foi triste, e cheia de saudades prévias. Ao acenar da janela, e ver o carro do pai partir, ela sentiu medo e alívio. Poderia ser livre de todas as cobranças silenciosas, de todas as perfeições estipuladas, de todo o cheiro comprado. Calçou um tênis e desceu de elevador para o chão, foi até a praça que tinha na esquina da casa dela. O dia estava frio e escuro, mas ela via tantas luzes e cores. Respirava um ar poluído como se fosse purificado. Ficou ali imaginando coisas, inventando argumentos, sussurrando palavras. Tudo o que tinha era a si mesma agora, não que não tivesse antes, mas dessa vez poderia mostrar o que era e pensava. Tomaria um porre, teria amigos, não teria regras. Diria sim para todas as suas vontades, e viraria gente de verdade. Seria imperfeita como manda o figurino. Cometeria erros, contaria piadas, faltaria da missa, ouviria rock, se apaixonaria. Era bonita aquela menina-moça, os olhos esverdeados e o cabelo negro, eram particulares. Mas o que ela tinha de melhor era vontade. Vontade de: conhecer a vida e desvendar pessoas.