terça-feira, 26 de maio de 2009

cômodo

estava tão confusa e agitada que perdera o sono. passava horas no sofá que parecia ser o único a acolher o corpo frio da menina. tinha tantas coisas pra fazer. mas num sentido de fuga não fazia nada. ficava escrevendo coisas que se perdiam nos papéis jogados no chão da sala. depois recitava poemas que não eram dela. ainda teimava em criar coisas para fazer arte. tinha deixado tantas coisas pra trás. e agora ficava amordaçada. não conseguia continuar. tinha preguiça de persistir num erro que cometera. por outro lado sabia que tinha que continuar. afinal de contas as manhãs chegavam e iam embora. enquanto ela com olhar hipnótico e perdido continuava ali no mesmo sofá. na mesma sala. com as mesmas palavras. os mesmos versos. e as mesmas artes. o tudo dela parecia uma coisa só. e perdida. tinha pensado em se mudar. mas já estava velha demais para mudanças. com nomes de ruas diferentes. outro número de apartamento. outro cheiro qualquer. por isso ficava ali. estática. um pouco triste. um pouco feliz. ao mesmo tempo que era um fracasso de sonhos perdidos. era corajosa de sonhos novos. sabe se lá por quê. sabe se lá de onde. sabe se lá quem eram. chamavam de sonhos. por isso ela repetia. não eram de tocar. nem de brincar. não faziam companhia física. mas permaneciam dentro dela. o cômodo de gavetas azuis e vermelhas dos sonhos. lá estava tudo que ela desejou um dia. e ainda desejava. os que ficavam nas gavetas azuis. eram os que deveria ser jogados fora. os das gavetas vermelhas. era os que ela ainda não tinha carimbado desitência. por isso. ou por alguma coisa. a menina de pijama branco ficava no sofá. tinha pegado a doença dos sonhos que se foram...

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Queria poder dizer pra ele o quanto eu me sentia desinteressante com todo aquele atraso. Nos viamos pouco e tinhamos tão pouco tempo. Mas nada que eu falasse faria com que ele dissesse que estava errado. Era eu a mimada e egocêntrica, não ele. É que pra mim não era sacríficio ouvir a voz dele por horas e sentir a mão quente dele sobre a minha na mesa de um bar qualquer. Esperava tanto, tinha noites mal dormidas pensando nele, fechava livros pela falta de concentração, deixava a TV no mudo pra poder ouvir o telefone tocar. Tudo bem, confesso: Eu quero ele só pra mim.

"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.
(Caio Fernando Abreu)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

MULHERES POSSÍVEIS..

Revista do Jornal O Globo


'Eu não sirvo de exemplo para nada, mas, se você quer saber se isso é possível, me ofereço como piloto de testes.
Sou a Miss Imperfeita, muito prazer.
Uma imperfeita que faz tudo o que precisa fazer, como boa profissional, mãe e mulher que também sou: trabalho todos os dias, ganho minha grana, vou ao supermercado três vezes por semana, decido o cardápio das refeições, levo os filhos no colégio e busco, almoço com eles, estudo com eles, telefono para minha mãe todas as noites, procuro minhas amigas, namoro, viajo, vou ao cinema, pago minhas contas, respondo a toneladas de e-mails, faço revisões no dentista, mamografia, caminho meia hora diariamente, compro flores para casa, providencio os consertos domésticos, participo de eventos e reuniões ligados à minha profissão e ainda faço escova toda semana - e as unhas!
E, entre uma coisa e outra, leio livros.
Portanto, sou ocupada, mas não uma workaholic.
Por mais disciplinada e responsável que eu seja, aprendi duas coisinhas que operam milagres.
Primeiro: a dizer NÃO.
Segundo: a não sentir um pingo de culpa por dizer NÃO.
Culpa por nada, aliás.
Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero.
Pois inclua na sua lista a Culpa Zero.
Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os outros.
Seu pai e sua mãe, acredite, não tiveram essa expectativa: tudo o que desejaram é que você não chorasse muito durante as madrugadas e mamasse direitinho.
Você não é Nossa Senhora.
Você é, humildemente, uma mulher..
E, se não aprender a delegar, a priorizar e a se divertir, bye-bye vida interessante.
Porque vida interessante não é ter a agenda lotada, não é ser sempre politicamente correta, não é topar qualquer projeto por dinheiro, não é atender a todos e criar para si a falsa impressão de ser indispensável...
É ter tempo.
Tempo para fazer nada..
Tempo para fazer tudo.
Tempo para dançar sozinha na sala.
Tempo para bisbilhotar uma loja de discos.
Tempo para sumir dois dias com seu amor.
Três dias.
Cinco dias!
Tempo para uma massagem.
Tempo para ver a novela.
Tempo para receber aquela sua amiga que é consultora de produtos de beleza.
Tempo para fazer um trabalho voluntário.
Tempo para procurar um abajur novo para seu quarto.
Tempo para conhecer outras pessoas.
Voltar a estudar.
Para engravidar.
Tempo para escrever um livro que você nem sabe se um dia será editado.
Tempo, principalmente, para descobrir que você pode ser perfeitamente organizada e profissional sem deixar de existir.
Porque nossa existência não é contabilizada por um relógio de ponto ou pela quantidade de memorandos virtuais que atolam nossa caixa postal.
Existir, a que será que se destina?
Destina-se a ter o tempo a favor, e não contra.
A mulher moderna anda muito antiga. Acredita que, se não for super, se não for mega, se não for uma executiva ISO 9000, não será bem avaliada.
Está tentando provar não-sei-o-quê para não-sei-quem.
Precisa respeitar o mosaico de si mesma, privilegiar cada pedacinho de si.
Se o trabalho é um pedação de sua vida, ótimo!
Nada é mais elegante, charmoso e inteligente do que ser independente.
Mulher que se sustenta fica muito mais sexy e muito mais livre para ir e vir...
Desde que lembre de separar alguns bons momentos da semana para usufruir essa independência, senão é escravidão, a mesma que nos mantinha trancafiadas em casa, espiando a vida pela janela.
Desacelerar tem um custo.
Talvez seja preciso esquecer a bolsa Prada, o hotel decorado pelo Philippe Starck e o batom da M.A.C.
Mas, se você precisa vender a alma ao diabo para ter tudo isso, francamente, está precisando rever seus valores.
E descobrir que uma bolsa de palha, uma pousadinha rústica à beira-mar e o rosto lavado (ok, esqueça o rosto lavado) podem ser prazeres cinco estrelas e nos dar uma nova perspectiva sobre o que é, afinal, uma vida interessante'.

Martha Medeiros - Jornalista e escritora

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Bilhete


já fazia um tempo que esperava por ele. demorava tanto tempo pra chegar. às vezes fugia pra vim ver a menina de sapatos vermelhos. era tão mais alto que ela. poderia escondê-la do mundo se quisesse. todas as tardes escrevia pra ela. e ela respondia pra ele. até que ele chegava numa sexta-feira perto da madrugada. e ela anciosa sem sono esperava. corria pros longos braços dele. e se jogava num salto. ele encostava a barba mal feita no pescoço dela. e falava de toda a saudade que sentiu durante a semana. depois segurava as mãos dela bem forte para que não escapassem. ela já sabia do jeito dele. e em alguns momentos ele fazia imenso silêncio. coisa que não a incomodava mais. afinal de contas homem nenhum gosta de falar. é que mulher é diferente. precisa dividir as coisas. ligar pras amigas no meio da noite. ela era assim. outras vezes ele fazia surpresa. e levava ela pra andar de bicicleta num jardim de flores amarelas. depois abria um vinho. e comemoravam qualquer coisa. depois de tanto tempo ela estava pronta pra ser dele. antes tinha medo. agora já não tinha mais. de tão livre que se sentia com ele. era um apego sem exigências. só por desejo.
passaram meses de amor acelerado. até que numa noite de sexta-feira ele não apareceu. deixou apenas um bilhete de despedidas. não continha explicação. nem desculpas. nem sequer um eu te amo. ela chorou por semanas. escreveu um bilhete. e até que enfim. se despediu dele também.